sábado, 19 de julho de 2008

recognoscere

Ele se sentou ao pé da porta e lá ficou. Não sabia dizer quanto tempo teria se passado desde a última vez que sentira aquele cheiro fresco de frutas. Era bom ficar ali, debaixo daquela semi-sombra permeada por raios quentes de sol. Olhou para a rua, para a calçada, chegando nos pés e na sua própria sombra que se misturava à sombra ralinha da árvore. Não era uma posição muito confortável, aquela. Podia sentir a calça travando nos joelhos, um braço do paletó que segurava no colo se arrastava no chão. Ele sabia que não precisava ficar ali pra sentir o cheiro das frutas – afinal, o cheiro vinha da sacola de plástico recheada de laranjas, tangerinas, mangas e goiabas que ele tinha acabado de comprar, e a menos que ele quisesse abandonar as frutas pelo caminho, o aroma cítrico o seguiria até a cesta de frutas da cozinha. Mas aquele cheiro pertencia àquele lugar. Não conhecia aquela casa, não tinha nenhuma lembrança relacionada à combinação cheiro de frutas + se sentar desajeitadamente onde quer que fosse. Só pareceu certo assim.


Deixou o desconforto se acumular até que não fosse mais suportável e se ergueu novamente sobre as pernas. Olhou para cima, o sol já estava a pino. Sentiu aquela cegueira momentânea e viu os mini-sóis gravados em seus olhos se refletirem na sacola, no paletó, na calçada, até se apagarem de vez. Pulava as linhas do calçamento e chutava uma e outra pedrinha ou tampa de garrafa reproduzindo um gesto automático adquirido na infância e esquecido por anos. Procurou o chiclete no bolso da calça e deu falta das chaves de casa. Não se sentiu aborrecido por ter esquecido suas coisas no escritório. Isso lhe daria a oportunidade de fazer o mesmo caminho de novo – não se sentaria debaixo da sombra, não teria os mesmos pensamentos e não sentiria o que sentiu, mas ao cheiro das frutas se juntaria o perfume da memória fresca. Ele sabia que, ao passar ali pela segunda vez, se sentiria menos sozinho. Aquele lugar agora o conhecia também.

sábado, 12 de julho de 2008

desalinho

ela só reparou que os sapatos estavam sujos quando saiu de casa. detestava sair com roupas desconfortáveis e sapatos sujos, parecia que todo o resto se desajeitava. mas continuou andando, não dava tempo de voltar agora. andava encolhida, com os braços cruzados para se proteger do frio. o dedo mindinho do pé começava a doer, o vento bagunçava o cabelo, alguns fios entravam nos olhos. ainda pagaria muito por aquela distração.

num dia em que tudo parecia ter despertado para lhe incomodar, ela buscou o aconchego de uma música cantada baixinho. buscou uma daquelas melodias antigas, que já tocaram tanto e que tempos atrás faziam tanto sentido, faziam tanto parte. era fácil se lembrar. mas carros buzinavam, vendedores gritavam e insistiam em colocar um panfleto nas suas mãos. a vida era interrupção.

durante todo o dia, olhou pros sapatos e lembrou da bagunça que deixou em casa. precisava arrumar aquela gaveta quebrada. colocar aquelas almofadas no sol. ler aquele livro encostado. suspirar e olhar pro teto.