sábado, 24 de janeiro de 2009

versões da mesma chuva

après moi, le deluge.

era meio-dia quando o temporal começou. bem na hora em que se espera que o sol brilhe no mais alto do céu e de fato ele estava lá. chovia grosso e pesado; os raios refletiam em cada gota, tornando a claridade algo surpreendente e insuportável. foi a primeira vez que precisei usar óculos escuros na chuva. 

pouco a pouco, os pingos grossos viraram chuviscos e o sol deslizou entre as nuvens ralas que então começavam a se espalhar (os amantes da lógica me dizem que é o contrário, as nuvens é que se movem, mas foi assim que eu vi, eu vi o sol correr para trás das nuvens assim que a chuva diminuiu o passo, eu vi, eu juro que vi). não ventava, o sol fazia mormaço e ardia na pele, me avermelhando as bochechas. a água no asfalto evaporava depressa e a cidade invejava as neblinas frias e matutinas das montanhas enquanto produzia a sua névoa improvisada, quente, com cheiro de piche e às duas da tarde. 

não lembro bem o que aconteceu depois. sei que adormeci ou adormeceram-me os músculos, pois eu não me mexia. queria sentir o frescor típico da chuva, mas não consegui. duvidei da minha capacidade de sentir, duvidei das nuvens escuras, duvidei das gotas na janela, duvidei da intuição. e, às quatro da tarde, a chuva não veio.

a noite chegou depressa. olhei ansiosa para o céu à procura de eletricidade, de tensão, de estrondo, de expectativa. encontrei apenas duas ou três estrelas e o ar já seco. sem a chuva para transbordar por mim, romperam-se diques, alagaram-se repartições, desfizeram-se nós. à deriva, o coração não bombeava sangue, mas uma substância insípida, inodora e incolor que muitos confundiam com água, mas que eu sabia se tratar da mais pura chuva. 

* esse é o último texto sobre chuva, prometo. (mentira, prometo nada)