quarta-feira, 21 de outubro de 2009

paint the black hole blacker

talvez daqui a algum tempo você me conte algo que eu não sabia sobre você. sobre, por exemplo, como costumava vasculhar minhas anotações em blocos de papel querendo saber um pouco mais de mim. números de telefone, rabiscos sem sentido, às vezes algum trecho de música. não que você suspeitasse de segredos ou mesmo de pequenas traições, não é nada disso. era mais como se tentasse buscar vestígios de alguma trilha que levasse mais e mais para dentro de mim. se você tivesse me contado quando os momentos ainda podiam ser chamados de oportunos, ah, eu teria ficado surpresa e feliz. e talvez tivesse te contado isso também.

talvez você me conte que costumava ficar nas pontas dos pés, levantar de propósito de repente ou se abaixar sem nenhum motivo para capturar os meus mais diversos ângulos. que imaginava poses minhas em fotografias que você nunca viu ou que nunca foram tiradas, nas quais você não me reconheceria. talvez me conte o quanto queria me conhecer uma, duas, três, inúmeras vezes para não deixar de me reconhecer naquele dia em que nos vimos de longe e que não fui capaz de sorrir, e nem você.

mas quem sabe você não me conte que cada decibel da minha risada por vezes alta demais fazia cócegas na sua barriga, e que por isso você ria também. que achava graça quando eu me excedia na alegria, na bebida ou em alguma conversa exageradamente viva. que era capaz de se distanciar do que estava acontecendo só para prestar atenção nesses raros momentos em que eu saía de mim, e que ao observar dava voltas ao meu redor e era carregado por irresistível carrossel, furacão, buraco-negro, labirinto e beco-sem-saída. talvez você não quisesse mesmo sair.

talvez a imagem que eu tenho agora na minha frente não seja o que eu vejo, talvez você ainda esteja aqui. ou talvez nunca tenha mesmo chegado, e por isso toda vez que penso em nós ou olho para a porta ou decido dormir.


[st. vincent - the strangers]

terça-feira, 4 de agosto de 2009

to be made of glass

olhar pela janela era o que havia de mais próximo da realidade. o hábito tornara-se tão rotineiro quanto o andar das pessoas lá embaixo, que iam e vinham quase todas no mesmo passo e horário do dia anterior. apesar de em certa medida angustiante, poderia dizer que gostava dessa regularidade -- ter algo repetitivo para se agarrar dava uma estabilidade até então desconhecida aos seus pensamentos. depois de tudo, era bom que fosse assim.

não se lembrava muito bem dela mais. de suas características mais fortes, como a cor do cabelo e o timbre da voz, a única coisa de que parecia se recordar agora era o espaço entre os cílios e a sobrancelha. por algum motivo, era o que ele mais gostava nela, aquele desenho tão insignificante aos olhos alheios. gostava que fosse assim, era algo que só ele e ninguém mais teria, nem ela mesma. aquele espaço seria protegido de qualquer ciúme e serviria como símbolo a possíveis saudades. o resto fora se apagando aos poucos, sendo desfeito cada vez que os pés dos estranhos tocavam o chão, como se ela própria tivesse sido impressa naquele intervalo de cimento batido que da janela ele conseguia vislumbrar.

ao desviar os olhos da paisagem, abaixando-os em direção ao trabalho que o esperava na mesa, era difícil não sentir um vento gelado correndo por entre os pulmões, empalidecendo os lábios. os ouvidos pareciam escutar uma voz aguda cantando ao longe, enquanto o calor e o sol que brilhavam lá fora tentavam atravessar janela e pele, tal qual pássaros que se debatem contra vidros espelhados reproduzindo o céu.


[bat for lashes - glass]

terça-feira, 23 de junho de 2009

would you always maybe sometimes

abaixava os olhos e tentava se distrair com algo. se usava blusa de frio com bolsos e podia esconder as mãos, seria esse o primeiro gesto, daqueles que de tão espontâneos e costumeiros a pessoa mal percebe que realizou. e em seguida, ato contínuo, abaixaria os olhos. sempre que suspeitava a presença de algo interessante, a distração era a primeira necessidade. não conseguiria se focar de imediato no interesse que se formava nas retinas. era preciso respirar, raso ou fundo, o que desse para fazer.

e assim ele adiou o quanto pôde o primeiro contato. só descobriu a cor dos cabelos quando toda a luz que vinha dela finalmente foi absorvida poro a poro por sua pele. a voz, só se sentiu capaz de ouvir depois de treinar os ouvidos com muita música clássica. foi preciso toda uma orquestra, anos mais tarde ele contaria. jamais se perdia ao ler as linhas dos passos dela pelo chão enquanto dançava, mas a urgência que crescia dentro dele o obrigava a fechar os olhos no ápice da música ou quando estava prestes a testemunhar um movimento secreto.

um dia, então, aconteceu. ainda sem abrir os olhos, foi despertando aos poucos, como quem volta de um sono secular, e então ele viu. de todas as armadilhas que a memória traz, de todas as distorções e idealizações, a lembrança daquele dia seria a mais intacta, a mais e a menos bonita. abriu os olhos e ela não estava lá; apenas algumas páginas arrancadas que contavam uma história de um menino que sonhou com uma menina, como tantas outras histórias (e meninas). a história do menino que viveu um século em um segundo, e que acordou para contar.


[grizzly bear - two weeks]

segunda-feira, 18 de maio de 2009

too much, too bright, too powerful

abriu o caderno de folhas pautadas, tipo brochura, cheirando a novo. tinha também três canetas coloridas, um copo de requeijão servindo de jarro com uma rosa pequena. o ambiente estava pronto. sentia que já era tempo de escrever aquela carta tão adiada, queria que essa fosse a última, só para que a anterior não fosse (aquela tinha um cheiro de desespero e urgência, como se cada ponto final pudesse fazer as coisas pararem um pouco, ficarem um pouco mais, um 'não me deixe, não me esqueça' engasgado em cada linha. queria que o outro estivesse em algo que fosse seu, nem que fossem os olhos correndo nas linhas, o fôlego apanhado entre os parágrafos, ah se pudesse ler em voz alta, teria também um pouco da voz, e se o seu coração se apertasse teria talvez uma lágrima tímida, será que leria em público?, pensara em tudo isso). mas já fazia muito tempo, muito nada, muitos segundos a mais, muito além, muitos muitos. tudo anda em linha reta, não há curvas nem retornos, de nada adianta fazer sinal, não há ônibus, não há táxis. não há sequer estações.

sabia que organizar a mesa e comprar papéis novos não mudaria nada. (tampouco a carta o faria, mas ainda não era momento de se admitir isso). já não saberia dizer quando mudar as coisas deixou de ser um objetivo e entrou no mundo dos sonhos. mas havia as folhas pautadas esperando; observava as reentrâncias das pétalas como quem busca a saída de um labirinto, tudo estava ali e no entanto nada saía dos pensamentos pronto a fazer os dedos desenharem letras e comporem palavras. o ritual não funcionou. ainda não conseguia deixar de se sentir um tanto triste quando isso acontecia. guardou tudo com cuidado mais uma vez, sentou-se na cama, abriu a janela. a noite estava bonita lá fora. a essa hora já era possível ouvir conversas animadas, saltos altos apressados, buzinas impacientes, pessoas, pessoas, pessoas. é, quem sabe outro dia.


[radiohead - last flowers]

quarta-feira, 22 de abril de 2009

but when they're parking their cars on your chest
you've still got a view of the summer sky 
to make it hurt twice when your restless body 
caves to its whims
and suddenly struggles to take flight.

(the shins - know your onion! - uma das minhas letras preferidas no mundo todinho. colocaria ela inteira se não fosse chato colocar letras inteiras em blogs.)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

until gravity feels sorry for you, and lets you go

pode parecer que não, mas foi tudo se desfazendo aos poucos. o grão de areia que ficou preso na ampulheta obstruindo a passagem do tempo deu lugar ao conhecido fluxo de grãos, até o momento de virar de ponta-cabeça mais uma vez e fazer tudo começar de novo. foi pensando assim que ela decidiu dar o último gole no café e pegar o trem na direção oposta. acelerou o passo, como se no trocar de pernas pudesse jogar para longe com mais vontade a areia que até então as encobriam. era nítido o esforço que fazia; se prestassem atenção, mesmo com a estação lotada àquela hora, qualquer um perceberia que ela se movia tal qual uma nadadora em areias movediças -- cada passo, um pedaço de vida que impedia de submergir.

nada aconteceu de repente, repito. quando enfim chegou ao outro lado da cidade, sacudiu os últimos grãos que ainda enchiam seus bolsos e sentiu a gravidade pesar menos em seus ombros, embora seus pés ainda marcassem o chão ao andar. entrou na primeira e mais alta construção que viu, subiu andar por andar sentindo o corpo ficar mais leve a cada degrau. ao chegar ao topo, notou que flutuava, os pés a alguns centímetros do chão. não conteve um sorriso nessa hora. arregalou os olhos como se assim pudesse ver com mais precisão a distância que a separava do teto do prédio. bobagem, pensou, a estas alturas, que diferença faz? sentiu o peito encher-se de alívio enquanto o vento a carregava, fechando os olhos que não ousariam mais se abrir.


[andrew bird - armchairs]

segunda-feira, 30 de março de 2009


ê interseçãozinha difícil essa. 

segunda-feira, 16 de março de 2009

i'm too tired to maintain that i'm slow

É aquele nó na garganta, o aperto no peito. Não mais uma reação ao que não se esperava, mas exatamente àquilo que de tão conhecido angustia, que faz querer correr e correr até não ter mais forças só para provar para si mesmo que se tentou fugir ou lutar -- só para externalizar o que já se pensou tanto. E eu me armo, inflo os pulmões com uma respiração concentrada e ansiosa, esperando pelo tiro de largada que nunca vem. Mal dou meu primeiro passo e congelo. Há tanto ainda que me impede de correr como antes. Mesmo quando ando, mal percebo a mudança no cenário. Há uma falta que deixa tudo sempre igual, que faz a corrida parecer inútil, e que (segredo) me faz ter desprezo, caminhar a passos mecânicos, porque tudo tanto faz.

Até vir o nó, até vir o aperto. Sem perceber, respiro fundo. E espero pelo tiro de largada mais uma vez.



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[update: guster, empire state ---- começo aqui uma série de posts inspirados em trechos/melodias de músicas que gosto muito. claro que não se pode esperar nenhuma frequência/coerência vindo desse blog, mas essa é a idéia]

quinta-feira, 5 de março de 2009

um dia, uma sala

A sala não era muito confortável. Lá na frente, a professora falava e falava várias coisas que ela já sabia de cor, mas que ainda assim errava, então o correto era permanecer. Se incomodava com afirmações generalistas e simplórias, ideologismos mal disfarçados, mas permanecia. Do lado, uma conhecida. Figura constante em vidas anteriores, poderia até ter sido uma antagonista em infâncias, adolescências, mas não chegara a tanto. Presença forte, porém distante; uma espécie de referência. Parecia decidida, firme, ativa (não-espectadora), tudo o que ela na sua crônica insegurança não alcançaria e que sabia que ia precisar e sofrer por não ter por muito tempo, por não ser. Tinha apenas sete anos quando primeiro se deu conta disso. Ainda hoje, ambas adultas, olhava para a outra em busca de alguma aprovação e empatia nas poucas palavras que trocavam em horas de silêncio. Reencontraram-se por obra do acaso, não do destino. Não havia nada que poderiam de fato aprender ali. E deixavam a sala, quase esquecendo de se despedir.

Mas as diferenças com quem se sentava ao lado já não ocupavam sua cabeça como antes. Nada realmente ocupava, há que se dizer a verdade. Olhou pras janelas fechadas e sentiu o frio do ar condicionado, interessante isso de fechar as janelas pra não entrar calor. Olhou para os pés e pensou em como suas unhas ficavam arroxeadas depressa, bastava esfriar um pouco. Passava o dia pensando em irrelevâncias assim. Isso quando não simplesmente se sentava e se deixava estar, pensamento vagueando a esmo, incapaz de se mover, de terminar a ação de tirar o casaco, de buscar um copo d'água. Deixava o dia, quase esquecendo de apagar a luz, fechar os olhos e dormir.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

tic-tac

Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.
(Caio Fernando Abreu)

e nessas horas a vida parece um grande relógio em contagem regressiva. e ela é, afinal.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Now I’m quietly waiting for the catastrophe of my personality to seem beautiful again


Now I'm quietly waiting for
the catastrophe of my personality 
to seem beautiful again,
and interesting, and modern.

The country is gray and 
brown and white in trees,
snows and skies of laughter
always diminishing, less funny
not just darker, not just gray.

It may be the coldest day of
the year, what does he think of 
that? I mean, what do I? And if I do,
perhaps I am myself again.
- Trecho do poema Mayakovsky de Frank O'Hara (In: Meditations in an Emergency)

don draper salvando meus dias. thanks, mad men.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

dando a cara à tapa (ou: notas de dias de tédio)


1. de tempos em tempos, eu tenho dessas crises de blog, vontade de apagar tudo, acho tudo ridículo, etc etc. daí passa mais um tempo e eu quero voltar a escrever e faço um postzinho metalinguístico pra justificar a minha volta. et voilà, aqui estou. 

2. ando achando tudo pequeno ultimamente. minhas intenções se apequenaram todas, a gente pode não mudar, mas com certeza se adapta. se é pequeno o que nos oferecem, vamos pegar as migalhas e fazer um banquete. essa coisa de querer ser the greatest não dá em nada mesmo. afinal, o que há tanto por aí pra se querer? juro que não sei mais. só sei desse motorzinho interno que impulsiona a gente pra frente pra frente pra frente - o que não implica em evolução, vou em frente nem que seja pra andar em círculos. o perigo é ficar parada.

3. assistir muito house e mad men em tempos já não tão felizes (adoro eufemismo) pode não ser muito recomendado, mas me traz um pé no chão necessário. é igual ouvir radiohead: preciso de um humor específico pra coisa fazer efeito de verdade. não posso estar deprimida, porque aí vou mesmo querer cortar os pulsos, mas também não combina com muita alegria. parece que é nesses momentos que eu consigo entender de verdade o que eles propõem e que eles me entendem de volta. 

4. tô enjoada do jeito que eu escrevo, tô tentando me abrir mais de verdade por aqui. adoro minhas metaforazinhas, tem muito mais dito sobre mim no que eu não digo, mas não me serve pra agora. preciso ser explícita (ou quase), preciso ser direta (ou quase). meu objetivo é a praticidade que eu nunca tive. então que comece aqui, no símbolo maior das minhas abstrações. porque eu bem cansei de tudo isso. 

é.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

pour que l'amour me quitte

cliquem pra aumentar. essa gente que é quase sempre ácida quando resolve ser sensível é de arrasar. grande andré dahmer. 

(o título é de uma música da camille. um dia eu tento explicar a ligação de uma coisa com outra, mas juro que pra mim faz sentido).

sábado, 24 de janeiro de 2009

versões da mesma chuva

après moi, le deluge.

era meio-dia quando o temporal começou. bem na hora em que se espera que o sol brilhe no mais alto do céu e de fato ele estava lá. chovia grosso e pesado; os raios refletiam em cada gota, tornando a claridade algo surpreendente e insuportável. foi a primeira vez que precisei usar óculos escuros na chuva. 

pouco a pouco, os pingos grossos viraram chuviscos e o sol deslizou entre as nuvens ralas que então começavam a se espalhar (os amantes da lógica me dizem que é o contrário, as nuvens é que se movem, mas foi assim que eu vi, eu vi o sol correr para trás das nuvens assim que a chuva diminuiu o passo, eu vi, eu juro que vi). não ventava, o sol fazia mormaço e ardia na pele, me avermelhando as bochechas. a água no asfalto evaporava depressa e a cidade invejava as neblinas frias e matutinas das montanhas enquanto produzia a sua névoa improvisada, quente, com cheiro de piche e às duas da tarde. 

não lembro bem o que aconteceu depois. sei que adormeci ou adormeceram-me os músculos, pois eu não me mexia. queria sentir o frescor típico da chuva, mas não consegui. duvidei da minha capacidade de sentir, duvidei das nuvens escuras, duvidei das gotas na janela, duvidei da intuição. e, às quatro da tarde, a chuva não veio.

a noite chegou depressa. olhei ansiosa para o céu à procura de eletricidade, de tensão, de estrondo, de expectativa. encontrei apenas duas ou três estrelas e o ar já seco. sem a chuva para transbordar por mim, romperam-se diques, alagaram-se repartições, desfizeram-se nós. à deriva, o coração não bombeava sangue, mas uma substância insípida, inodora e incolor que muitos confundiam com água, mas que eu sabia se tratar da mais pura chuva. 

* esse é o último texto sobre chuva, prometo. (mentira, prometo nada)