pode parecer que não, mas foi tudo se desfazendo aos poucos. o grão de areia que ficou preso na ampulheta obstruindo a passagem do tempo deu lugar ao conhecido fluxo de grãos, até o momento de virar de ponta-cabeça mais uma vez e fazer tudo começar de novo. foi pensando assim que ela decidiu dar o último gole no café e pegar o trem na direção oposta. acelerou o passo, como se no trocar de pernas pudesse jogar para longe com mais vontade a areia que até então as encobriam. era nítido o esforço que fazia; se prestassem atenção, mesmo com a estação lotada àquela hora, qualquer um perceberia que ela se movia tal qual uma nadadora em areias movediças -- cada passo, um pedaço de vida que impedia de submergir.
nada aconteceu de repente, repito. quando enfim chegou ao outro lado da cidade, sacudiu os últimos grãos que ainda enchiam seus bolsos e sentiu a gravidade pesar menos em seus ombros, embora seus pés ainda marcassem o chão ao andar. entrou na primeira e mais alta construção que viu, subiu andar por andar sentindo o corpo ficar mais leve a cada degrau. ao chegar ao topo, notou que flutuava, os pés a alguns centímetros do chão. não conteve um sorriso nessa hora. arregalou os olhos como se assim pudesse ver com mais precisão a distância que a separava do teto do prédio. bobagem, pensou, a estas alturas, que diferença faz? sentiu o peito encher-se de alívio enquanto o vento a carregava, fechando os olhos que não ousariam mais se abrir.
[andrew bird - armchairs]
2 comentários:
Que isso? Sua versão para "da arte de espatifar-se"? Claro que a sua versão é beeeem mais bem feita. Linda você.
Beijos.
Amo. Saudade.
que bonito!
(eu pensei em outras coisas pra falar, mas para que?)
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