talvez daqui a algum tempo você me conte algo que eu não sabia sobre você. sobre, por exemplo, como costumava vasculhar minhas anotações em blocos de papel querendo saber um pouco mais de mim. números de telefone, rabiscos sem sentido, às vezes algum trecho de música. não que você suspeitasse de segredos ou mesmo de pequenas traições, não é nada disso. era mais como se tentasse buscar vestígios de alguma trilha que levasse mais e mais para dentro de mim. se você tivesse me contado quando os momentos ainda podiam ser chamados de oportunos, ah, eu teria ficado surpresa e feliz. e talvez tivesse te contado isso também.
talvez você me conte que costumava ficar nas pontas dos pés, levantar de propósito de repente ou se abaixar sem nenhum motivo para capturar os meus mais diversos ângulos. que imaginava poses minhas em fotografias que você nunca viu ou que nunca foram tiradas, nas quais você não me reconheceria. talvez me conte o quanto queria me conhecer uma, duas, três, inúmeras vezes para não deixar de me reconhecer naquele dia em que nos vimos de longe e que não fui capaz de sorrir, e nem você.
mas quem sabe você não me conte que cada decibel da minha risada por vezes alta demais fazia cócegas na sua barriga, e que por isso você ria também. que achava graça quando eu me excedia na alegria, na bebida ou em alguma conversa exageradamente viva. que era capaz de se distanciar do que estava acontecendo só para prestar atenção nesses raros momentos em que eu saía de mim, e que ao observar dava voltas ao meu redor e era carregado por irresistível carrossel, furacão, buraco-negro, labirinto e beco-sem-saída. talvez você não quisesse mesmo sair.
talvez a imagem que eu tenho agora na minha frente não seja o que eu vejo, talvez você ainda esteja aqui. ou talvez nunca tenha mesmo chegado, e por isso toda vez que penso em nós ou olho para a porta ou decido dormir.
[st. vincent - the strangers]