sexta-feira, 26 de setembro de 2008

atropelo

tudo o que não posso ver em detalhes, eu atropelo. um olhar que se desvia, um óculos escuro, uma cerca no jardim, uma pedra no caminho, uma desculpa para sair, para calar ou para rir sem graça – se não atropelo, me atropelam. eu te encontro e finjo que não vejo, e salto uma, duas, três vezes para não passar por cima de você aqui dentro, mas tudo que acontece são tropeções, esbarrões e, mesmo quando tento disfarçar com uma cambalhota, atropelo. os dias correm aos pulos ou se reduzem a um fiapo de nada, tentando ultrapassar, se infiltrar, se esgueirar, mas nenhum efeito pode/deve ser minimizado: é preciso bater de frente.

e eu bato. quando digo finjo minto que não, sigo embolada por dias a fio. e ando com pés e mãos amarrados, enquanto tento caminhar e te desejar um bom dia, acenando de longe. 

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

someday you'll be old enough to start reading fairy tales again

The Land of Faery,
Where nobody gets old and godly and grave,
Where nobody gets old and crafty and wise,
Where nobody gets old and bitter of tongue.
William Butler Yeats
The Land of Heart's Desire

Já não se lembrava da última vez que tinham oferecido um pedaço do sanduíche ou um gole do suco guardado na garrafinha térmica dentro da lancheira. Mas ainda assim, olhava para todos com aquele mesmo sorriso fixo no rosto, um sorriso meio abobado, diziam alguns. Um sorriso amável, dizia a professora. Mas só ele sabia que aquele era um sorriso indiferente. Sorria porque não conseguia esboçar outra reação ao assistir a rotina das crianças, pulando de brinquedo em brinquedo, levantando a mão para fazer uma pergunta ou para ir ao banheiro, cantando músicas bobocas e alegres. Cantar ele sabia, e já tinha de fato cantado bastante e dado gargalhadas e distribuído abraços no fim de canções. Agora só assistia.

Algumas pessoas lhe perguntavam o que tinha acontecido, por que tinha mudado, assim, de uma hora pra outra. Não sentia nenhuma preocupação genuína vindo dessas perguntas, apenas educação. Gentileza, sim, tinha um quê de gentileza no tom das perguntas. Um quê de piedade, também. Ele abaixava a cabeça, as bochechas um tanto vermelhas, e voltava a levantar, ainda com o mesmo sorriso amigável. Sabia que não havia ainda se tornado alvo de grandes especulações ou curiosidades, e isso o confortava.

Sempre tem alguma verdade que a gente nunca conta. A dele era que ele sabia o momento preciso em que haviam embrulhado a sua inocência com papel celofane e mandado para a Terra do Nunca. Mas saber não quer dizer entender, e ao tentar entender, ele revirou todos os cantos e labirintos dentro dele e não viu nenhuma luz de vagalume, nenhuma lagarta virar borboleta, nenhum bilhete com senha secreta. Parou de acreditar em fadas, e todas aquelas que o vigiavam, escondidas em olhares e canções e surpresas e bolos e pirulitos e balanços e em lápis de cores e rabiscos, disseram adeus.